Rodocabotagem ganha espaço na busca por equilíbrio na matriz de transportes

Historicamente, o transporte de cargas no Brasil consolidou-se sobre o modal rodoviário, que corresponde por mais de 60% da movimentação de mercadorias no território, segundo dados da Confederação Nacional do Transporte (CNT). Essa predominância, no entanto, passou a enfrentar pressões decorrentes do crescimento da produção industrial, da diversificação da pauta de exportações e da concentração populacional e econômica nas áreas litorâneas. Nesse contexto, surgiu a necessidade de adotar novos arranjos logísticos capazes de absorver volumes maiores, reduzir custos sistêmicos e atender a padrões mais rigorosos de previsibilidade e sustentabilidade.

É nesse cenário que a rodocabotagem se insere como um modelo de integração modal que conecta a flexibilidade do transporte rodoviário à escala do transporte marítimo de cabotagem. O funcionamento ocorre por meio da coleta e entrega realizadas por caminhões, que transportam a carga até os portos de origem e destino, enquanto os navios assumem o percurso de longa distância pela costa brasileira.

Um aspecto que diferencia a rodocabotagem de soluções multimodais tradicionais é a possibilidade de atender também à carga fracionada, seja no formato LTL ou LCL. Por meio da integração entre malhas rodoviárias de coleta, consolidação e distribuição da carga e a rede marítima de cabotagem, torna-se viável reunir pequenos volumes de diferentes embarcadores e transportá-los sob gestão unificada. Essa configuração amplia o acesso à cabotagem para empresas de menor porte, que até pouco tempo não dispunham dessa alternativa logística.

Essa combinação distribui funções de acordo com a eficiência operacional de cada modal, transferindo para o marítimo volumes expressivos em rotas recorrentes e preservando para o rodoviário as etapas de maior proximidade, como trechos regionais e urbanos. Dessa maneira, evita-se a sobreposição de custos em longos percursos terrestres e aproveitam-se economias de escala típicas da navegação costeira, sem reduzir a importância do caminhão na matriz logística.

A consolidação desse modelo vem sendo favorecida por mudanças normativas, como a Lei 14.301, que implementou o projeto BR do Mar, e o decreto 12.555/2025 que regulamentou sua execução. Tais medidas criaram condições para ampliar a frota de cabotagem, flexibilizar o afretamento de embarcações e reduzir barreiras regulatórias. Além disso, reforçaram competências da Agência Nacional de Transportes Aquaviários (ANTAQ) e de órgãos correlatos, conferindo maior previsibilidade para investidores e operadores.

Impactos da rodocabotagem para o transporte de cargas

Para embarcadores industriais e varejistas, a opção pela rodocabotagem representa a possibilidade de estabilizar custos em rotas longas, reduzir a exposição a oscilações de preços de insumos logísticos e planejar estoques com maior previsibilidade. Já para as transportadoras rodoviárias, abre-se a oportunidade de reposicionar suas operações, concentrando esforços em trechos regionais, na alimentação de portos e na distribuição urbana, áreas em que o caminhão mantém vantagens operacionais.

Os portos, por sua vez, passam a demandar investimentos em retroáreas, acessos rodoviários e sistemas digitais que reduzam gargalos nas interfaces. Para o Estado, por fim, cria-se a chance de reduzir a dependência de um único modal e de construir uma matriz de transportes mais equilibrada e resiliente.

Além desses efeitos, o aspecto ambiental reforça a relevância da integração, já que o transporte marítimo apresenta emissões significativamente menores por tonelada-quilômetro em comparação ao rodoviário. Em uma simulação prática, considerando o transporte de 5 toneladas entre Blumenau (SC) e Cabo de Santo Agostinho (PE), por exemplo, a alternativa exclusivamente rodoviária gera cerca de 1,2 tCO₂e, enquanto a rodocabotagem reduz esse volume para 0,2 tCO₂e.

A diferença fica ainda mais clara quando observada em termos de intensidade. O modal rodoviário resulta em 240 quilos de CO₂e por tonelada transportada, enquanto a rodocabotagem emite apenas 40 quilos. Essa redução superior a 83% torna tangível o impacto ambiental positivo do modelo e reforça seu papel como instrumento relevante para o cumprimento das metas de descarbonização assumidas pelo Brasil e pelas empresas inseridas em cadeias globais de fornecimento.

A consolidação desse modelo já encontra respaldo em experiências práticas do setor, em que operadoras logísticas estruturaram redes multimodais capazes de integrar frota rodoviária própria, armazéns distribuídos em diferentes regiões do país e acesso direto a navios de cabotagem. Essa configuração possibilita oferecer ao mercado um transporte contínuo e sob gestão unificada, reduzindo riscos de fragmentação de responsabilidades e garantindo maior previsibilidade aos embarcadores. Essa prática demonstra, em última instância, que a coordenação entre ativos terrestres e marítimos pode atender a diferentes setores, do consumo massivo à indústria automotiva e ao agronegócio conteinerizado, convertendo a rodocabotagem em solução permanente.

Desafios e viabilização da rodocabotagem no Brasil

No entanto, a consolidação em escala nacional depende de condições estruturais que ainda precisam ser fortalecidas. A modernização da infraestrutura portuária e dos acessos terrestres é indispensável para evitar que gargalos em terra neutralizem ganhos de eficiência obtidos no mar. Da mesma maneira, a formação de mão de obra especializada, tanto marítima quanto rodoviária, deve acompanhar o crescimento do setor, uma vez que operações intermodais exigem novas competências técnicas.

A viabilidade da rodocabotagem no Brasil decorre, assim, de suas próprias características geográficas e econômicas. A concentração da população e da produção industrial em áreas próximas ao litoral cria condições naturais para que o mar seja utilizado como corredor de longa distância, em complementaridade à malha rodoviária. Essa combinação permite reduzir a dependência de percursos exclusivamente terrestres, ampliar a eficiência do escoamento de cargas e equilibrar a matriz de transportes. Ao explorar esse potencial, o país consegue responder de maneira estruturada às pressões competitivas e ambientais que orientam o comércio global, transformando a integração entre rodovias e navegação costeira em uma estratégia de desenvolvimento logístico sustentável.

Diante desse panorama, a rodocabotagem afirma-se como componente estratégico da política de transportes brasileira. Seu avanço exige a coordenação entre Estado, operadores privados, embarcadores e transportadoras, assim como a continuidade dos investimentos em infraestrutura e tecnologia. Com essas condições asseguradas, o modelo tem potencial para ocupar posição relevante na matriz logística nacional, elevar a produtividade, fortalecer a competitividade e alinhar o país às exigências ambientais que definem o comércio internacional.



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